O jantar era celebratório na mansão de Joesley Batista no
bairro do Jardim Europa, em São Paulo, naquele 4 de setembro de 2017. O dono
da J&F brindava
com Jackson Widjaja, empresário indonésio de ascendência chinesa, a venda
da Eldorado Celulose.
O acordo havia sido fechado dois dias antes.
O mercado considerou que a Paper Excellence, braço brasileiro do conglomerado
de Widjaja, havia pago caro demais. Eram R$ 15 bilhões para ter
100% das ações da empresa construída do zero pelos Batista em
Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Empreendimento que foi possível graças a
dinheiro do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e de
fundos de pensão de estatais.
Joesley tinha como prioridade, naquele momento, salvar a JBS, joia da coroa da família e
hoje maior produtora de carnes do mundo. O indonésio procurava uma indústria
para comprar e entrar no Brasil.
O clima relaxado não durou. Os celulares de Joesley e de outros
presentes começaram a tocar. Na TV, Rodrigo Janot, então
procurador-geral da República, ameaçava anular a delação premiada dos irmãos
Joesley e Wesley Batista, denunciados por corrupção. O acordo de
leniência, recorde, era de R$ 10 bilhões, a serem pagos em 25 anos.
Não levou muito tempo para a venda da Eldorado dar uma guinada e se
transformar na maior disputa acionária no país desde o conflito entre o
banqueiro Daniel Dantas com a Telecom Itália na primeira década deste século.
Para testemunhas, é uma briga quase pessoal.
Seis anos depois, pedido de anulação de arbitragem feito pela J&F está na
1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São
Paulo). A Paper, vencedora da mediação por três a zero, está a um voto de
repetir o placar também na apelação. O relator Franco de Godoi negou
o pedido da defesa dos Batista, condenou a J&F por
litigância de má-fé e votou por transferir os 50,59% das ações da holding para
a Paper, dando a ela 100%.
Para Franco de Godoi, a J&F usa medidas protelatórias para evitar a
concretização da venda.
O desembargador Alexandre Lazarini seguiu o parecer do relator e o
processo está com o colega Eduardo Nishi. Se ele concordar com Godoi, a Paper
venceu. Se discordar e for favorável à anulação da arbitragem, outros dois
serão chamados porque se trata de uma melhor de cinco. Alguma das partes
precisa ter três votos.
Quem ganhar não vai levar, por enquanto. É certo que haverá apelação para o STJ
(Superior Tribunal de Justiça). Recurso que vai servir para acrescentar páginas
a um processo que já tem 36 mil.
As duas empresas e seus empresários bilionários não se entendem em nada. Nem
mesmo no significado de uma palavra-chave: "liberar".
Pelas últimas três semanas, a Folha ouviu
pessoas envolvidas no caso. Todas conversaram com a reportagem na condição do
anonimato. É uma disputa que vai além dos bilhões. Há alegações de espionagem,
ameaças de morte (até o momento não comprovadas por investigações) e acusações
quanto ao passado dos envolvidos.
Um executivo da J&F, ao lamentar a disputa, diz que os únicos a ganhar com
isso são advogados. E trata-se de muitos. Na audiência da arbitragem, em março
de 2020, foram 70. Trinta e cinco para cada parte.
Pessoas da Paper riem abertamente dessa opinião porque, para elas, é a
J&F quem impede o negócio de ser fechado. Assim como dão risada da visão da
rival de que Jackson Widjaja não tem dinheiro para completar a transação.
Lembram que a quantia para finalizar a compra já está depositada no Itaú.
Condições de venda
foram desenhadas em papel sulfite
A Eldorado,
um projeto de Joesley em ramo de atividade que a família jamais havia
investido, foi colocada à venda em 2016. Era uma das empresas do grupo, ao lado
da Alpargatas e Vigor, disponibilizada no mercado. Implicados em suborno a
políticos e investigados em operações da Lava Jato, os irmãos fizeram acordo de
delação premiada para se manterem à frente da holding.
As negociações eram formas de levantar recursos para não quebrar e
convencer os bancos, reticentes em alongar a dívida do grupo. A chilena Arauco
ofereceu R$ 14 bilhões. A indonésia Paper propôs R$ 15 bi.
Em reunião realizada nos Estados Unidos, pouco antes da assinatura do
contrato, Joesley pegou um pedaço de papel sulfite e dez desenho dividindo o
valor a ser pago: R$ 7,5 bilhões seriam a compra em si; outros R$ 7,8 bi
ficariam como quitação das dívidas da Eldorado.
Para construir a Eldorado, os Batista haviam dado como garantias ações da JBS e
bens familiares, avaliados em R$ 7,5 bilhões. Ele queria que, em quatro meses,
a Paper liberasse as garantias dadas pela J&F nos empréstimos para a
construção da Eldorado.
Widjaja, acompanhado do diretor presidente da companhia no Brasil, Claudio
Cotrim, pediu um ano. Joesley concordou.
A companhia indonésia, especializada em aquisições, comprou parte das ações da
J&F, as que estavam com os fundos de pensão, bancos internacionais e chegou
a 49,41%. Gastou R$ 3,8 bilhões pelo caminho. O tempo começou a correr para
adquirir os 50,59% dos Batista.
No artigo 15 do contrato, em inglês, foi colocado o termo "release",
palavra ampla sobre as qual os dois lados da disputa não se entendem.
Para a Paper, o termo significava "liberar" as garantias da J&F
como fosse possível —substituindo os bens por outros, pagando um boleto com o
valor da dívida ou depositando na conta da Eldorado a quantia suficiente.
Para a J&F, a palavra obrigaria a Paper a trocar as garantias da
vendedora por outras oferecidas pela compradora. Também afirma que a rival
desejava assumir o controle da empresa antes da liberação.
As duas também não se entendem sobre por que a venda empacou. A Paper
afirma que a J&F bloqueou, de todas as formas, o pagamento do valor
necessário para comprar as 50,59% das ações do Batista —R$ 4,2 bilhões,
acrescidos de juros, eram o valor quando o processo foi aberto, em 2018.
Para demonstrar ter capacidade financeira para fazer o negócio, a Paper
depositou em uma conta no BTG Pactual, R$ 11,5 bilhões, quantia que depois, por
determinação da arbitragem, seria levada para o Itaú. Foi colocada em pauta a possibilidade
de o BNDES emitir um boleto bilionário para que o pagamento das garantias fosse
feito. A J&F queria que esta fatura tivesse o nome da Paper. O banco negou
porque a devedora era a Eldorado.
A J&F depois diria que a adversária levantou cerca de R$ 1 bilhão
dinheiro no mercado para fazer o depósito. A Paper afirma que foi decisão de
Widjaja usar recursos próprios.
O BNDES garantiu que, se a Paper não pagasse o documento, a companhia de
celulose não seria penalizada, mas nem isso fez o negócio andar.
A Paper vê aqui uma coincidência. A J&F parou de colaborar quando o preço
da celulose no mercado internacional aumentava em quase 50% durante 2018, ano
em que o real se desvalorizou, em média, 14%. O movimento do câmbio beneficia
a Eldorado,
que exporta sua produção.
Para os indonésios, a tática dos Batista era "empurrá-los para o
precipício", fazê-los perder o prazo de um ano para liberar as garantias e
então iniciar nova negociação.
A prova disso, afirma a Paper, seria um pedido extra de R$ 6,4 bilhões feito em
reunião em Los Angeles em agosto de 2018 , relatado à Folha em
abril de 2019 por Claudio Cotrim, que foi processado. A confirmação
do pedido bilionário consta, porém, em carta de advogados da holding.
No encontro, Agnaldo Gomes Ramos Filho, sobrinho de Joesley e Wesley e então
presidente da Eldorado,
repetia a necessidade de um "new deal" (novo acordo).
Pessoas da J&F disseram à reportagem que o pedido era natural e não se
tratava de "resgate". Dizem que a Paper perderia o prazo e seria
necessária uma renegociação, já que a Eldorado se valorizara.
A Paper, para esses integrantes da holding brasileira, entrou com processo
semanas antes de o prazo terminar porque não conseguiria cumprir o combinado.
Funcionários dos Batista colocam em dúvida a capacidade financeira de Widjaja
para comprar a companhia e dizem que as vitórias da Paper na Justiça têm mais a
ver com a imagem ruim de Joesley perante a opinião pública.
Para a J&F, a adversária poderia facilmente ir aos bancos,
substituir as garantias e fechar o negócio apresentando o contrato, como
"em qualquer processo de compra e venda".
A Paper considera essa visão uma fantasia e afirma ter judicializado a
questão apenas como forma de manter seus direitos. A Justiça paulista negou o
pedido de transferência das 50,59% das ações solicitado pela empresa, mas
determinou extensão do prazo para liberação de garantias até o final da
arbitragem.
Disputa tem acusações
de hackeamento e roubo de e-mail
Instaurado o processo, cada uma escolheu seu árbitro e esses
determinaram um terceiro advogado para ser o presidente. A Paper venceu por
três a zero após três anos e mais de cem manifestações dos dois batalhões de
advogados. A J&F entrou com pedido de anulação. Alega, entre outras coisas,
que o processo foi manchado por hackeamento e conflito de interesses.
A brasileira garante ter sido espionada com dispositivos colocados em
celulares, computadores e em carros de funcionários. Na alegação apresentada à
Justiça, diz que foram roubados 70 mil e-mails e assegura que há laudo pericial
que comprova isso.
Duas investigações criminais foram realizadas em São Paulo e Diadema e
arquivadas. Há uma terceira, aberta na capital e com novas testemunhas, ainda
em andamento.
A acionista majoritária da Eldorado também se queixa do que é chamado de "direito
de revelação". Diz que os três árbitros que decidiram o caso não eram
imparciais. Um deles, Anderson Schreiber, dividiu escritório com advogado do
escritório Stocche Forbes, que defende a Paper e teria a obrigação de revelar
isso.
Em seu voto, Franco de Godoi descartou o argumento e escreveu que a J&F
reclama de um expediente "corriqueiro na advocacia".
A holding considera todo o processo viciado. A Paper afirma que venceu por um
único motivo: provou ter feito tudo o que estava ao seu alcance para cumprir as
obrigações contratuais e a J&F tenta subterfúgios para evitar a venda.
Antes de negociar a compra, Widjaja ouviu que Joesley poderia ser um problema
no trato pessoal, mas que nos negócios empresariais era um
"dealmaker", expressão em inglês para designar pessoas práticas, que
fecham negócios.
Todas as vezes que têm chance, funcionários da J&F ressaltam que Eduardo
Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, recebeu cheque simbólico de
Widjaja, em 2019, que simbolizava investimentos de R$ 31 bilhões —a imagem foi
postada nas redes sociais pelo deputado. Também gostam de descrever Widjaja
como a terceira geração de um grupo chinês poluidor e acusado de desmatamento.
Executivos da Paper ironizam e respondem que, como Bolsonaro, na teoria, não
gostava da China, a J&F se referia ao dono da Paper apenas como
"chinês". Como agora Lula não tem problema com o país asiático,
Widjaja passou a ser "o indonésio".
Enquanto a briga se desenrola, a Eldorado teve lucro recorde no ano
passado: R$ 3,53 bilhões. Os dividendos não foram distribuídos. As assembleias
anuais de acionistas contam com a presença de executivos da J&F e oito
advogados da rival.
Por determinação da Justiça, qualquer gasto superior a R$ 25 milhões
precisa de aprovação de ambos, o que, segundo os dois lados, impede novos
investimentos. Entre eles, a construção de uma nova fábrica, de US$ 3 bilhões.
À margem da disputa, o Itaú espera. Por determinação da arbitragem, o
banco está com o dinheiro para fechar a transação e com o livro de ações
da Eldorado.
Foi criado o Manoa Excellence, fundo de renda fixa para administrar o depósito
da Paper. Os R$ 4,2 bilhões se transformaram, graças aos juros, em R$
8.496.979.877,47 no final de setembro.
Se a venda for concretizada, a J&F receberia o valor. A Paper
promete processar a holding dos Batista e pedir indenização por, entre outras coisas,
lucro cessante.
No final de tudo, as duas partes não se entendem nem sobre como este
litígio empresarial deve ser contado para gerações futuras. Executivo da Paper
vê como um grande livro. Para a J&F, seria uma ótima série da Netflix.
A cronologia da briga
Setembro de 2017
A J&F acerta a venda da Eldorado Celulose para a Paper Excellence. Compra envolvia
liberação das garantias oferecidas pelos Batista em empréstimos para a
construção da Eldorado,
avaliadas em cerca de R$ 7,5 bilhões.
Agosto de 2018
Em reunião nos EUA, a J&F fala em novo acordo e pede mais R$ 6,4 bilhões.
Paper nega e diz que compra dos 100% das ações está de pé.
Agosto de 2018
Com a proximidade do fim do prazo para liberar as garantias da J&F, Paper
entra na Justiça. Alega que a vendedora não cumpriu obrigações de colaborar.
J&F nega. É concedida extensão do prazo até o final da arbitragem
determinada no acordo.
Setembro de 2018
Vence o prazo original do contrato para que a Paper libere as garantias da
J&F
Março de 2020
Acontece a audiência de arbitragem, com a participação de 70 advogados. É
determinado que o dinheiro da Paper para finalizar a compra seja transferido
para o Itaú, escolhido como banco de custódia.
Fevereiro de 2021
A Paper é vencedora da arbitragem por 3 a 0. J&F entra com pedido de
anulação do processo e denuncia espionagem, hackeamento e conflito de
interesses dos árbitros. Paper afirma que venceu porque provou ter feito tudo
para cumprir o contrato.
Setembro de 2023
O desembargador José Francisco Franco de Godoi nega pedido da J&F para
anular a arbitragem e a condena por litigância de má-fé. Considera que a
empresa usou estratégias meramente protelatórias. Também descarta as denúncias
da J&F de hackeamento e conflito de interesses dos árbitros. O
desembargador Alexandre Lazarini acompanha o voto de Godoi e deixa a Paper a um
voto de vencer a apelação.
Fonte: Folha de São Paulo
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